JOTA – Imposto de renda não captura eventos econômicos de IoT
Em continuidade à série de artigos que discute os principais desafios envolvendo a Internet das Coisas ou “IoT”, abordaremos adiante alguns exemplos em que esse ambiente de IoT pode favorecer a geração de novas riquezas a partir dos dados obtidos no desenvolvimento de algumas atividades, além de gerar facilidades decorrentes da conectividade de objetos à internet e propiciar a realização de atividades cotidianas de forma inteligente.
Essas novas formas de riquezas, dada sua intangibilidade, não são adequadamente capturadas pelas normas de imposto sobre a renda das pessoas jurídicas atualmente vigentes, razão pela qual pode-se aferir a existência de crescentes movimentos internacionais para se corrigir essa distorção.
Para ilustrar a discussão acima referida, podemos citar as empresas de produtos esportivos, que, além de desenvolver suas atividades tradicionais, paralelamente têm se tornado também uma espécie de empresas de tecnologia, atuando cada vez mais no desenvolvimento de softwares altamente avançados e na “sensorização” de itens esportivos que permitem obter diversas informações dos usuários como, por exemplo, frequência cardíaca, calorias, quilometragem etc., por meio do uso da conectividade no ambiente de IoTi.
A Under Armour é um desses exemplos de empresas nessa seara que vem transformando toda a sua linha esportiva em artigos de alta tecnologia.
Para isso, passou a investir em aplicativos e plataformas de atividades físicas, implementando a conectividade de seus produtos de vestuários à internet. Como exemplo dessas inovações, foi anunciada, recentemente, a venda de tênis inteligentes produzidos sob medida, com solas desenvolvidas em impressoras 3D, a partir da análise de dados dos usuários obtidos via aplicativos de corridas e fitness. Tais produtos são encaminhados pelos consumidores diretamente dos aplicativos disponibilizados pela Under Armour e enviados em 2 dias aos clientesii.
A ideia por trás desse novo tipo de produto é bastante simples: ao mesmo tempo em que a Under Armour, de um lado, aumenta sua clientela por meio do fornecimento de produtos bastante adaptados às necessidades individuais, de outro ela amplia sua base de dados, por meio dos aplicativos e das informações extraídas dos sensores dos tênis, permitindo o investimento em novos produtos mais atrativos e ainda mais personalizados para seus clientes, de forma a ampliar sua fatia de mercado e, consequentemente, aumentar sua lucratividade com produtos de maior valor agregado.
O ambiente de IoT pode efetivamente contribuir para formação da base de dados das empresas de tecnologia de maneira exponencial, pois permite que um objeto inteligente, aliado a um software e conectado à rede, tenha seus dados coletados e processados remotamente.
A IoT permitirá, assim, a geração de expressiva base de dados de usuários, com inúmeras informações que, para a nova economia digital, são muito valiosos. Em estudo realizado há alguns anos pelo Ministério da Economia e Fiança da França, por exemplo, esses dados foram considerados o “sangue” da economia digitaliii, porque as empresas usam essas informações para medir e aprimorar o desempenho de aplicativos, personalizar serviços, recomendar novos produtos aos clientes, desenvolver inovações que dão origem a novos produtos e adotar decisões estratégicas em seus negócios. Um aspecto muito vantajoso é que esses dados, na maior parte dos casos, são decorrentes da mera interação dos usuários [“free labour”]iv, têm baixo custo de investimento e alto retorno econômico. Ou seja, esses dados são uma verdadeira fonte de riqueza das empresas da economia digital.
Nesse contexto globalizado em que se situa o ambiente de IoT, o imposto sobre a renda deveria servir como uma das ferramentas para tributar as riquezas auferidas por uma determinada empresa por decorrência do desenvolvimento e exploração de atividades em um determinado país.
O problema é que, por conta dos princípios aplicáveis desde a sua concepção, referido imposto não consegue, ainda, desempenhar essa função no contexto da economia digital, que envolve inúmeras transações digitais entre os países. Por esse motivo, as empresas de tecnologias vêm lucrando a partir da exploração de dados obtidos de usuários no mundo todo, mas não tributam a riqueza gerada nos países em que se originaram os lucros, em função da inadequação das normas tributárias vigentes.
O sistema tributário é formado por um conjunto de normas internas de cada país e, ainda, por convenções internacionais que fixam e repartem a competência para tributar lucros das empresas, com base em eventos que permitem criar, na medida do possível, um vínculo de determinada pessoa ou fato a uma jurisdição. A maior parte dessas normas são amparadas no princípio da origem da riqueza e lealdade econômica, i.e., são consideradas as várias contribuições dos diferentes países na produção [fonte de produção] e fruição da renda [residência]v.
Com base nesse princípio é que o modelo de Convenção para se evitar a Bitributação da renda em matéria tributária divulgado pela OECD (a “Convenção-Modelo”)vi prevê que os rendimentos auferidos por determinada entidade são tributados pelo Estado de Residência (da empresa), salvo se a entidade conduz suas atividades por meio de um estabelecimento permanente, conforme definido no artigo 5 da Convenção-Modelo, no outro Estado.
A OCDE define estabelecimento permanente, em breves linhas, como uma instalação FÍSICA, com caráter permanente, onde se desenvolvem atividades diretamente ou por meio de um representante que atue em nome da entidade e que possua poderes que permitam celebrar contratos em nome delavii. O conceito de estabelecimento permanente está, assim, atrelado a um “local fixo de negócios” ou “agente dependente”, elementos esses que exigem algum tipo de presença física. Essa definição é claramente incompatível com a exploração de dados obtidas no ambiente de IoT, porque não permite captar os bens e riquezas intangíveis ou as atividades desenvolvidas de forma remota, que independem de um local fixo típico da economia tradicional.
As normas de tributação internacional ainda não são, portanto, aptas a capturar os fatores de produção da economia digital
Essa mesma dificuldade também é verificada nas normas internas dos países, que não conseguem individualmente tributar as atividades digitais nos casos em que inexiste uma sede ou estabelecimento físico de empresas de tecnologia.
Considerando a importância desse novo tipo de riqueza na economia global, observa-se um movimento internacional para o fixação de outros critérios de atribuição de competência tributária, baseada em nova noção de “estabelecimento permanente” que pudesse ser ancorada na relevância da economia digital ou de outra forma de conexão para a tributação da renda. O objetivo seria garantir a tributação, pelos países, das riquezas geradas digitalmente no seu âmbito.
Nesse cenário, em 2015, a OCDE publicou o Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting (“BEPS”), no qual, entre outros assuntos, abordou a questão da economia digital como um desafio à tributação internacional, apontando justamente a necessidade de relativizar o conceito existente de “estabelecimento permanente” para esse mercadoviii. Em referido Plano de Ação n.º 01, foi defendida a criação de um novo elemento de conexão, visando tributar as receitas das empresas não residentes que exercerem atividades digitais, afastando-se a necessidade de sua presença física. Sugere-se, assim, a criação de um novo elemento de conexão baseado no conceito de presença econômica significativa (“Significant Economic Presence” ou “SEP”).
Com base na SEP, para que uma empresa digital estrangeira pudesse ser tributada num determinado país, precisariam estar presentes as seguintes características: (a.) fator receita: seriam analisadas somente as operações realizadas no ambiente digital e que fossem de “grande impacto”, estabelecendo-se um limite mínimo para que somente receitas elevadas fossem tributadas [essa análise poderia ser efetuada a partir de informes apresentados pelas empresas que exploram esse mercado, por exemplo]; (b.) fator digital: consiste em aferir se as empresas possuem um domínio, plataforma digital e disponibilizam opções de pagamento locais em um determinado país; (c.) base de usuários: as informações sobre os usuários, igualmente, seriam um fator relevante para a determinação do quanto uma empresa participa da economia de um país, podendo ser feita uma análise vinculada à quantidade de usuários ativos por mês, quantidades de contratos online concluídos e informações coletadas dos usuários etc.; (d.) combinação do fator descrito em (a.) com outras informações relevantes, como a existência de contas bancárias em um país, por exemplo.
Em continuidade ao Plano de Ação n.º 01, a OCDE, mais recentemente, por meio do Inclusive Framework (ou “IF”), grupo especial formado por 113 países, emitiu o estudo denominado “Tax Challenges Arising from Digitalisation – Interim Report 2018”, com o objetivo de orientar os países a melhor lidar com os desafios originados da nova era digitalix. Nesse novo estudo, concluiu-se que, desde a publicação do Plano de Ação n.º 01, nenhum dos novos padrões ali indicados teria sido adotado pela maior parte dos Estados membros da OCDE. Verificou-se, ainda, que os poucos membros que adotaram o SEP, a exemplo da Índia e Israel, limitaram-se a conferir uma nova interpretação às leis internas para tentar proteger ou expandir suas fontes de tributação.
Na Índia, por exemplo, houve diversas alterações nas normas de tributação de lucros das empresas, as quais ampliaram os elementos de conexão para a tributação da renda auferida por não residentes, incorporando-se algumas noções do SEP. Em resumo, passou-se a admitir a tributação dos lucros de empresas estrangeiras que atuam localmente, independentemente de seu nível de presença física em referida jurisdição, sempre que fosse aferido (a.) um determinado valor mínimo de receitas auferidas na Índia ou (b.) um número mínimo de usuários no mercado indiano.
Essas alterações legislativas ainda não foram regulamentadas e ainda se aguarda a definição, pelas autoridades tributárias indianas, (i.) das regras de alocação de lucros a serem aplicadas ou da forma de atribuição de lucros a cada SEP, para fins de cobrança do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas; e (ii.) da abrangência dessas normas e sua aplicação para empresas residentes em países que celebraram convenção para se evitar a bitributação da renda com a Índia.
No caso de Israel, foi divulgada uma “circular administrativa” determinando-se que, se fosse verificada uma presença econômica significativa no país, poderia ser realizada a tributação da renda ali auferida, adotando-se o conceito de SEP. Nesse sentido, ainda que a residência efetiva de uma empresa fosse em outra jurisdição, se não houver convenção para se evitar a bitributação com Israel, será levada em consideração sua “presença digital” nesse país, assumindo-se os seguintes critérios: (i.) número significante de contratos online; (ii.) oferecimento de produtos e serviços digitais que são usados por um número significativo de israelenses; (iii.) existência de sítio eletrônico local com características que permitam aferir destinar-se ao público israelense [língua, descontos para Israel etc.]; e (iv.) receitas diretamente relacionadas a produtos digitais vendidos em Israel. A exemplo da Índia, contudo, ainda não foram explicados os critérios para definição da base de cálculo do imposto sobre a renda devido nesse caso; a regulamentação administrativa em vigor menciona, apenas, que devem ser aplicados critérios advindos do “arm’s length principle”.
Ainda a respeito, destaque-se que a União Europeia publicou recentemente o Digital Tax Packagexii, que prevê a criação de um imposto específico sobre determinadas receitas de atividades digitais, conforme discutimos em nosso artigo anterior, e apresenta proposta para a reforma das regras de imposto sobre a renda das pessoas jurídicas que exerçam atividades digitais, de modo a permitir a tributação de lucros não atrelada a uma “local fixo de negócios” pelos Estados-membros.
Essa proposta tem por objetivo permitir que as empresas do mercado digital sejam tributadas de forma semelhante às empresas “tradicionais”. Surgiu, assim, o conceito de “presença digital”, afastando-se a necessidade de “presença física” para as empresas de tecnologia, desde que atendidos um dos seguintes critérios: (a.) exceder o limite de €7 milhões de receitas anuais em um Estado-membro; (b.) no curso de um exercício fiscal, atingir um número de usuários num Estado-Membro superior a 100.000; e (c.) celebrar mais de 3.000 contratos relativos a serviços digitais, aferidos também no curso de um exercício fiscal. A ideia central proposta na UE é atribuir ao país onde a riqueza é gerada um elemento de conexão específico para autorizar sua tributação, por meio do conceito de “presença digital”.
Conclusão
Com amparo nos recentes movimentos internacionais, não há dúvidas de que a IoT representa uma nova fonte riqueza para as empresas de tecnologia, que atualmente são beneficiadas pela ausência de regras fiscais que permitam aos países tributar a renda gerada pela exploração de dados.
As regras em vigor estão muito ancoradas em conceitos ligados à presença física, mas a IoT, em conjunto com outros fatores da economia digital, vem fomentando a adaptação e/ou criação de um novo conceito de estabelecimento permanente que prestigie a “presença digital”, ou a presença econômica significativa (SEP) das empresas de tecnologia em determinada jurisdição, em detrimento da simples presença física, na tentativa de equalizar a tributação dessas empresas e equipará-las, para fins de imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, às empresas tradicionais.
Renata Borges La Guardia – Doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo. Sócia de Pereira Neto, Macedo Advogados
Ellen Stocco Smole Franco – Pós-Graduada em Direito Tributário pelo Insper e IBDT. Advogada associada de Pereira Neto, Macedo Advogados
Ana Luiza Stella Santos – Pós-Graduada em Direito Tributário pelo IBDT. Advogada associada de Pereira Neto, Macedo Advogados.
Esse artigo foi publicado no portal Jota.info e está disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/imposto-de-renda-nao-captura-eventos-economicos-de-iot-09102018